A ARTE POPPOVERA DE DUMAS
Dumas, ou melhor, Antônio Carlos Dumas Seixas (Belém do Pará 1958) foi-me apresentado por Júlio Mendonça, durante o processo de feitura de Artéria 9, em 2006 - não propriamente a pessoa, mas um seu trabalho, que veio a constar da publicação (que sairia no 2º semestre de 2007). Somente o fato de ter sido apresentado a mim por Júlio Mendonça já seria um bom motivo para me interessar pela obra do artista, dado o fato de Júlio ser alguém dotado de uma aguda percepção para as qualidades artísticas em geral e, por isto mesmo, possuidor de um senso crítico raro. Porém, o trabalho, que poderia ser obra de um poeta-visual, já se apresentava com uma força brutal, despertando a minha curiosidade com relação a outras realizações daquele fazedor. Teria ele, já, uma obra? Outros trabalhos confirmariam a excelência do primeiro a que tive acesso?
Tendo tido a oportunidade de ver outros trabalhos do artista, em coleções particulares, e em duas exposições individuais e, daí, conhecendo-o pessoalmente, tive a confirmação de que se tratava de um produtor-de-linguagem de primeira-linha, de alguém com consciência-de-linguagem, além da consciência-de-ofício, já que os trabalhos eram fruto de um labor também artesanal.
Dumas carrega toda a herança da tradição artística em que se insere, sem deixar de trazer sua contribuição pessoal – Pop Art, Arte Conceitual, procedimentos do Cubismo e de Dada (Colagem, Assemblage, incorporação do Acaso). Seus materiais: os mais despojados (a princípio) de artisticidade – a recolha de detritos da Civilização tornou-se, para Dumas, uma constante e é daí que opera milagres, fazendo de materiais não-nobres, obras que adentram o universo do Admirável. Dumas é uma espécie de Midas: tudo o que toca acaba por se revestir de um grande valor, de um qualitativo raro. Há um aparente desleixo na elaboração artesanal de seus objetos, que, em verdade, embutem todo um pensamento. Mobilizando esses recursos da precariedade, Dumas cria objetos que, mesmo em seu aspecto múltiplo, são portadores de uma coerência incontestável. Fragmentos de memória (como já escreveram belamente Anderson Gomes e Júlio Mendonça, em folders de mostras) presentificam-se em fragmentos de materiais encontrados na área mais urbanizada do País, norteados por um pensamento - Dumas é um artista que pensa a Arte, não alguém que apenas elabora objetos apreciáveis. A partir de materiais variados, em grande parte desprezados pela e na urbe, brotam assuntos que se relacionam com o mundo e o submundo da diversão, dos jogos, do sexo-ele-mesmo. Dumas fala um repertório que explicita influências de grandes nomes da Arte do século XX, do Brasil e do Mundo, tais como Picasso, Duchamp, Bispo do Rosário, Farnese de Andrade, Andy Warhol (menos), Rauschenberg (mais), Nelson Leirner, Wesley Duke Lee. E, passando por todos eles, consegue construir um trabalho que é Dumas. É desse modo que ele se insere na plêiade de artistas que, despontando em fins do século XX, projetam-se para o XXI.
Por outro lado, Dumas congrega, em sua obra, elementos que se estendem de Belém do Pará, sua terra-natal (tipografia e papelaria do pai + loja de objetos religiosos reverberam em seus trabalhos), ao Extremo-Oriente, mais pontualmente ao Japão e, como o holandês Van Gogh, estabelece diálogo com artistas, via xilogravura. Assim como o pintor dos girassóis que, apaixonado, reinterpreta peças que chegaram ao Ocidente no século XIX, por exemplo, a Chuva, de Hiroshige, Dumas – não por acaso – se vê atraído por aquele impressionante fenômeno pluvial configurado signo: fez, o paraense, várias leituras, das quais cheguei a conhecer 3, sendo que uma se constituiu em instalação (a mais impactante), que constou da exposição do artista realizada na Pinacoteca de São Bernardo do Campo, em meados de 2010. Inacreditável o tratamento que Dumas deu ao trabalho, que poderia ser intitulado D’après Hiroshige: uma releitura, uma tradução, um desdobramento que - quero crer - o artista tinha em mente a questão da chuva em Belém, elemento da cotidianidade do lugar, que marca o antes e o depois numa jornada. Uma leitura que põe em evidência o refinamento do repertório plástico (gráfico-pictural) de Dumas. Nos desenhos, ou melhor, nos trabalhos elaborados tendo o papel como suporte, uma delicadeza, um refinamento digno da arte nipônica do ukiyo-ê, e o estabelecimento, portanto, de um diálogo firme com aquele Oriente, em que a tradição do haiku (enquanto estrutura poética) sequer pode ser descartada. Teriam os japoneses, que se radicaram no Pará, no século XX, alguma parte nisso?
Numa época em que artistas sonham sair em colunas sociais… e saem, em que mais que a obra, exibem as suas próprias figuras. Num momento em que colecionadores milionários e curadores todopoderosos selam destinos de artistas jovens, Antônio Carlos Dumas Seixas, destoa, pois que sua obra ela-mesma se coloca com força, muito embora à margem do sistema, enquanto que ele jamais se põe à frente ou se aventura a dar explicações mirabolantes sobre seus feitos. Num tempo em que gente muito jovem é promovida a celebridade das artes, quando ainda nem amadureceu e sequer veio a possuir domínio técnico e dos materiais com que lida, integrando prematuramente os acervos de museus do mundo todo (por obra de curadores interessados em se mostrar na ordem-do-dia), Dumas, um produtor-de-linguagem que já atingiu a maturidade enquanto domínio de técnicas, processos e materiais, de par com conceitos que norteiam a sua obra, espera ser descoberto pelo público de aficionados das Artes e pela crítica. Dumas, com fragmentos descartados pela Civilização, fixa cenas para a Posteridade. Eis um artista maior!
Omar Khouri . São Paulo . 7 de julho de 2013